
Pintura emblemática, ilustração essencial de qualquer obra que trate do período equivocadamente chamado de “União Ibérica”, periodo da união dos reinos da Espanha e Portugal, esta pintura de Maíno tem acompanhado dezenas de livros, cartazes de conferências e diversos eventos que tratam deste período ou, especificamente, da adesão do Brasil à Monarquia Hispânica. Não se trata, portanto, apenas de uma bela pintura do barroco espanhol. Sua reprodução repetida e sua universalização entre os historiadores modernistas o elevou a tal status que poderíamos dizer que ele representa sozinho todos aqueles que estudam o período 1580-1640 e seus diferentes desenvolvimentos, especialmente os políticos e militares. Talvez também porque representa o ponto alto da união de coroas: a vitória das armas luso-espanholas sobre o “herege” holandês em Salvador da Bahia, nada menos que a sede do Governo Geral do Estado do Brasil, lugar cobiçado pelos holandeses e atacado em inúmeras ocasiões ao longo da primeira metade do século XVII e especialmente em 1624. O chamado “Dia do Brasil”, dirigido por Fadrique de Toledo, foi um dos eventos militares mais divulgados do século XVII e deu origem a esta emblemática pintura, que se baseou em parte na peça “El Brasil Restituído” de Lope de Vega, concluída em outubro e apresentada em novembro de 1625. Embora esta peça tenha servido de inspiração para a pintura, Maíno também tinha em mente o livro “Restauración de la ciudad del Salvador, Baía de Todos los Santos, en la Provincia del Brasil: por las Armas de Dom Philippe IV el Grande Rei Catholico de las Españas y Indias etc.”, do cronista real Tamayo de Vargas, impresso em 1628. Acima e além destas questões está o tema principal do quadro, a exaltação das vítimas na cena da guerra, priorizada sobre as armas, os soldados e os generais, o que o tornou um ícone, com analogias muito claras em termos de assunto com outro quadro emblemático, o Guernica de Picasso.
Esta pintura reflete o momento de sucesso militar durante as primeiras etapas da Guerra dos Trinta Anos e o retorno às armas nos mais de 60 anos de enfrentamento contra os “rebeldes da Flandres” e seus aliados ingleses, especificamente o annus mirabilis de 1625, que testemunhou as vitórias de Breda, Gênova, Bahia, Cádiz e Porto Rico, e pouco depois a de São Cristóvão e Neves (1629). Esta série de vitórias em tão curto espaço de tempo, reflexo do poder da Monarquia Hispânica nos primeiros anos do reinado de Felipe IV, foi o motivo da decoração do Salão de Reinos no Palácio Buen Retiro. O Conde Duque de Olivares pensou que isto aumentaria o prestígio da história “negligenciada” da Espanha e ajudaria a elevar a reputação da Monarquia (RUIZ GOMEZ, 2009, p. 180). É possível que os assessores de história de Gaspar de Guzmán, como Francisco de Rioja, tenham sido os que propuseram as 12 vitórias a serem ilustradas e imortalizadas com pinturas em grande formato por alguns dos mais distintos pintores da época, mas não há dúvida de que o valido esteve diretamente envolvida em todo o planejamento do espaço pictórico.
O autor da obra Recuperação da Bahia, Frei Juan Bautista Maíno, natural de Pastrana, foi um dos pintores mais destacados da primeira metade do século XVII. Maíno viajou para a Itália por volta de 1604 e em Roma teve um filho natural com outro espanhol. Sua estadia na Itália também o levou para Nápoles. Na Itália ele conheceu a obra de Caravaggio, Gentileschi e Reni, pintores que influenciaram profundamente seu estilo e o tornariam um dos grandes caravagistas espanhóis (CEBALLOS, 2009). Ao voltar da Itália, ele se estabeleceu em Madri e sua fama já o precedeu, pois foi convidado pela corte a ensinar desenho ao príncipe Felipe, o futuro Felipe IV. Em 1613 ele entrou na Ordem Dominicana (estatuto de limpeza de sangue de 1612), o que explica a produção relativamente reduzida do pintor, pois ele teria se retirado da linha de frente da criação artística. Pouco se sabe sobre os anos que antecederam a composição de sua grande pintura. Assim que entrou na Ordem Dominicana, foi para Toledo, mas voltou à corte em 1616, onde já era o professor de pintura do jovem príncipe Felipe. Nesta qualidade, ele o acompanhou na viagem de Felipe III a Portugal em 1619. O próprio Maíno deve ter estado interessado nesta viagem, pois sua mãe era nativa de Lisboa e a família aparentemente tinha alguns negócios nos territórios ultramarinos de Portugal. Em 1627 ele participou de um concurso de pintura sobre o tema da Expulsão dos Mouros, que foi vencido por Velázquez.
A ideia de decorar o Salão de Reinos do Palácio Buen Retiro em Madri deve ter vindo dos conselheiros reais, como já notamos, mas todo o plano foi conduzido pelo rei e pelo homem forte do momento, o Conde Duque de Olivares. Giovanni Battista Crescenzi, superintendente das obras reais, Velázquez e o próprio Maíno estiveram envolvidos na concepção da decoração do grande salão e na seleção dos sujeitos e pintores, com o dinheiro saindo do bolso privado do monarca.
Maíno pintou o quadro entre 1634 e 1635, assim como os outros pintores que produziram obras para o Salão de Reinos. Este vasto espaço, de 34 metros de comprimento por 10 metros de largura e 8 metros de altura, foi decorado com um amplo cofre com arabescos e os brasões dos 24 reinos que constituíam a Monarquia Hispânica na época, incluindo o Reino de Portugal, ao qual Salvador da Bahia pertencia. Nas paredes laterais, entre as portas e acima delas, e nas duas extremidades, seriam colocados os 27 quadros que decoravam o grande salão. Entre as portas estariam os maiores quadros, 12 no total, retratando as vitórias da Monarquia, muitos deles do annus mirabilis de 1625, mas também outros mais recentes no tempo. Acima das portas estão as dez cenas da vida de Hércules, pintadas por Zurbarán, e na frente das portas estão os cinco retratos equestres de Felipe III, Felipe IV, suas esposas e o Príncipe Balthasar Charles, todos pintados por Velázquez. (RUIZ GOMEZ, (s.d.), RUIZ GOMEZ, 2009; BROWN, ELLIOTT, 1981).
A pintura de Maíno ocuparia um lugar muito proeminente, sendo a primeira do lado oeste da parede norte, portanto à direita da porta de entrada e muito perto de onde estava o trono de Felipe IV. O Conde Duque sentou-se ao seu lado em mais ou menos a mesma disposição que estas duas figuras no quadro. (Ceballos, 2009, p. 190). Ele não somente foi notável por seu lugar no salão. Segundo vários relatos, na época, a pintura de Maíno era considerada a mais importante de todas as pinturas do Salão de Reinos, acima de Las Lanzas de Velázquez, que, com o passar do tempo, passou a ser considerada uma das mais significativas da história da pintura espanhola. Prova disso é que vários poetas convidados por Olivares para escrever sobre as pinturas no Salão de Reinos dedicaram sonetos a ele, enquanto nenhum mencionou a pintura de Velázquez. (Rivero, 2020). Todos os estudos do Salão de Reinos, incluindo os mais importantes de Brown e Elliott, concordam que estas duas pinturas, a “Recuperação da Bahia” e a “Rendição de Breda”, são verdadeiros destaques da pintura espanhola do século XVII e as duas pinturas mais importantes do espaço real que constituía o Salão de Reinos.
É importante notar que Maíno pintou um dos dois quadros que retrataram Fadrique de Toledo, pois foi o protagonista da conquista de Salvador em 1625 e de Saint Kitts e Neves, ilhas do Caribe, em 1629, este último pintado por Félix Castelo.
Os episódios da reconquista da cidade de Salvador da Bahia pela frota de Fadrique de Toledo narrados no quadro eram bem conhecidos na época. A frota holandesa, sob o comando de Jacob Willekens, conquistou a cidade em maio de 1624. Depois de ouvir a notícia, o rei e o Conde Duque mobilizaram todo o sistema naval, reunindo duas marinhas e três esquadrões, uma frota de 62 navios com 12.500 homens para reconquistar a cidade. A enorme armada, sob o comando de Fadrique de Toledo, apareceu na Bahia de Todos os Santos em 1º de abril de 1625 e reconquistou a cidade em um mês de luta, com os exércitos vitoriosos entrando nas muralhas da cidade em 1º de maio. Assim que a vitória dos ibéricos ficou conhecida, inúmeras “relações de sucesos”, cartas ou crônicas foram escritas e publicadas dando detalhes da ação militar, atribuindo o sucesso ou à inteligência do general Fadrique, ou à habilidade dos fidalgos portugueses, ou, com o passar do tempo, à ação planejada pelo Conde Duque, ordenada pelo rei e executada pelos generais. Esta foi a versão narrada pelo cronista real Tamayo de Vargas em seu relato dos acontecimentos de 1628, com o qual Maíno estava sem dúvida familiarizado. Tamayo era um amigo do pintor e alguns dos elementos básicos expressos pelo cronista real em sua obra aparecem na pintura. Entretanto, é indubitável que a principal fonte de inspiração para o pintor, além da obra de Tamayo, foi a comédia de Lope de Vega “El Brasil restituido”, que foi apresentada no palácio em novembro de 1625 e provavelmente contou com a presença do próprio Maíno em sua qualidade de pintor da corte e professor de pintura do rei.
A peça de Lope apresenta uma cena na qual Fadrique de Toledo, após a vitória, faz uma parada com um emissário holandês, Leonardo, para discutir as condições da rendição. Fadrique é a favor da punição máxima. Depois de rasgar as condições que lhe foram apresentadas pelo enviado holandês que proclama:
“Eu não vou
Eu não pretendo aceitar condições
de paz ou outros acordos
no patrimônio de meu rei;
por tanta audácia
ele me enviou para punir.
Mas ele prossegue dizendo que o rei, um “juiz severo”, “saberá ser um pai piedoso”. Para “falar com ele”, ele descobre um retrato de Felipe IV e exorta o negociador holandês a “colocar seu joelho no chão”. O general do exército vitorioso fala assim:
(Revelar o retrato de H. M. Philip IV,
Deus descanse sua alma. Amém.)
Magno Filipe, essas pessoas
Peça perdão por seus erros;
deseja Vossa Majestade
que desta vez nós os perdoamos?
Parece que ele disse que sim.
Fechar
Pois eu lhes concedo o perdão,
deixando o que eles roubaram
e só saindo
com as roupas que eles têm,
provisões de três meses
e enviar para suas próprias terras,
sem levar com eles um único verso,
pólvora, nem munição. (Lope de VEGA, El Brasil restituido, ed. de Guido de SOLENNI, p. 109).
Apesar da semelhança entre as duas obras, a peça e a pintura, Maíno altera consideravelmente a cena de Lope. A novidade mais importante é a substituição do retrato do rei por uma tapeçaria na qual aparecem outras figuras além do monarca e, em geral, o tom geral da comédia e as afirmações nela imputadas a Fadrique, são muito mais agressivas do que o que Maíno finalmente representou. Além disso, esta cena se funde com a cena final da peça, na qual a alegoria do Brasil coroa o rei com o louro (MARÍAS, VARONA, 2009, p. 68).
Lope de Vega e Maíno reproduziram nesta cena o que na época era considerado o aspecto mais notável da vitória dos exércitos luso-espanhóis em Salvador da Bahia: a clemência concedida aos inimigos. Fadrique de Toledo, relacionado ao Duque de Alba, de memória infame para os habitantes das Províncias Unidas, teria demonstrado a misericórdia e a clemência que deveriam ser aplicadas aos derrotados, como um exemplo a ser seguido. Nas “Relaciones de sucesos” publicadas em 1625, as cláusulas que Fadrique havia concedido aos holandeses nas negociações que levaram à rendição foram repetidas uma e outra vez, incluindo o fato de que os quase 2.000 soldados poderiam partir livremente e que lhes seriam dados barcos e suprimentos para a viagem (VALENCIA Y GUZMÁN, 1626).
De um ponto de vista composicional, A Recuperação da Baía é apresentada como uma pintura dentro de uma pintura, com três cenas sobrepostas que devem ser lidas de trás para frente. O ponto de vista do pintor está distante da cidade de Salvador da Bahia, que mal se vislumbra ao fundo. Está empoleirada no topo do morro, talvez a uma altura exagerada, e várias torres podem ser vistas, notadamente a Sé-Catedral. Em Tamayo lemos: “… a cidade do Salvador está localizada sobre a língua da água em uma eminência de mais de quarenta braças de altura, que pode ser alcançada por caminhos estreitos…” (TAMAYO DE VARGAS, 1628, p. 102). No fundo da colina, ligado à cidade por uma estrada sinuosa, vemos a área portuária, mal delineada, e diante dela uma multidão de navios em meio a uma batalha naval. Em um tiro antes desta cena temos uma marinha, um grupo de seis navios, quatro menores e mais distantes, e dois galeões em um tiro mais próximo. Em várias chalupas, os soldados estão viajando com pacotes que estão prestes a serem descarregados na costa. No ponto de desembarque mais distante, um grande grupo de soldados pode ser visto, enquanto no mais próximo, um oficial com um alabarda na mão aparece de costas voltadas, acompanhado por dois índios vestidos convencionalmente com saias em forma de penas, um deles vestindo um toucado em forma de penas. Toda a cena marítima funciona como uma espécie de conjunto, separado das duas cenas principais por fundos rochosos, uma vertical e outra diagonal, que fornecem a primeira e a principal cena.
Seguindo a ordem de trás para frente, encontramos a cena na qual o General Fadrique, vestido com calças verdes e doublet e usando a faixa carmesim de um general, mostra a um grupo de holandeses rendidos e ajoelhados uma tapeçaria sob um dossel, na qual alguns anjinhos aparecem segurando a inscrição latina “Sed dextera tua” tirada do Salmo 43:4 da Vulgata que diz por extenso: “Neque enim in gladio suo possederunt terram, et brachium eorum salvavit eos, sed dextera tua et brachium tuum“. (Pois eles não conquistaram esta terra com sua espada, nem foi seu braço que os salvou, mas sua mão direita e seu braço). Atrás do general aparecem duas figuras de generais, também com a faixa carmesim sobre o peito, uma delas sobre a margarida, dando-lhe assim um certo destaque, mas não tanto quanto o general espanhol. Esta figura parece estar se dirigindo aos holandeses que clamam por misericórdia, apontando para a baía com seu braço, presumivelmente indicando-lhes que poderiam embarcar uma vez que tivessem obtido um perdão real. Há uma correspondência entre os três: eles usam a faixa carmesim, carregam um chapéu de aba larga, como era comum entre os oficiais de alta patente, e os dois na faixa, Fadrique e seu companheiro, carregam um bastão, enquanto o terceiro, no plano inferior, é mostrado empunhando um objeto que parece mais difícil de identificar como um bastão, e que se parece mais com uma jineta, embora seja de muito pouco comprimento. Pode ser um bastão com um ornamento.
Uma característica notável deste grupo de oficiais é que seus rostos estão idealizados, pois se os dois primeiros eram, como Rivero salientou, Fadrique e Juan de Orellana, ambos estavam mortos no momento em que a pintura foi concluída. Também é digno de nota o fato de que os três oficiais são representados com bigodes e cavanhaques, em contraste com as barbas usadas pelos holandeses e os habitantes portugueses que retornam à cidade.
Voltando à tapeçaria, ele mostra um retrato de Philip IV (aquele mostrado por D. Fadrique ao enviado holandês na comédia de Lope), mas com variações importantes. O rei é “escoltado” por trás por uma figura de Minerva, deusa da guerra, e o Conde Duque de Olivares, que coroa o rei com uma coroa de louros.
O rei parece mais jovem do que era naquele ano, assim retratado em 1625, a época da vitória. O jovem rei é mostrado usando uma armadura, com a faixa carmesim de um general e com uma espada embainhada. Ele segura o bastão de comando em sua mão esquerda e em sua direita a folha de palmeira da vitória, que Minerva o ajuda a segurar. O Conde Duque desempenha um papel muito importante em toda a cena. Junto com Minerva, ele segura a coroa de louros na cabeça do rei. Como o rei, ele aparece com a meia-armadura e a faixa do general (com um carmesim mais intenso?) e em sua mão esquerda segura o espadim cerimonial dos monarcas católicos, por sua posição de cavaleiro do rei (CEBALLOS, 2009, p. 190) em que se entrelaçam ramos de oliveira, aludindo ao seu sobrenome e à paz alcançada após a vitória luso-espanhola. A coroação do rei também aparece na cena final da comédia de Lope, mas, neste caso, é a alegoria do Brasil que está cingida a ele.
A pesquisa com raios X mostrou que a figura de Olivares foi originalmente pintada abaixo da cabeça do rei, mas Maíno corrigiu este detalhe e a colocou ligeiramente mais alta. Embora a razão desta mudança não seja clara, foi sugerido que ela pode ter sido uma indicação direta do valido ou do Pronotário de Aragão, Jerônimo de Villanueva, que encomendou e pagou as telas no Salão de Reinos, assim como supervisionou sua execução (CEBALLOS, 2009, p. 190). O tratamento da ornamentação dos colarinhos também é curioso: no caso dos generais, os colarinhos são adornados com pulseiras nos ombros, enquanto que o rei e o Conde Duque, como exigem os pragmáticos trajes austeros de 1623, têm o típico colarinho endurecido.
A parte inferior da tapeçaria tem um importante simbolismo. Três figuras no chão são pisoteadas pelo rei e pelo Conde Duque. A figura à esquerda (à direita da tapeçaria) é claramente uma alegoria de heresia, pois ele é mostrado quebrando uma cruz, aludindo à vitória sobre a “heresia” protestante/calvinista dos holandeses. Segue-se uma figura com rosto irado e cabelo tipo cobra, cuja mão direita é uma espécie de garra mostrando uma ferida, e segura uma serpente na mão esquerda atrás do pé direito de Olivares. Foi interpretado como uma alegoria do Furor, como descrito por Cesare Ripa em seu tratado de Iconologia de 1603 (CEBALLOS, 2009). Entretanto, Fernando Marías e María Cruz de Carlos Varona, em seu estudo no catálogo editado por Leticia Ruiz Gómez, interpretam esta figura de forma diferente: ela poderia estar ligada à Inveja como a mãe da Guerra, Aflição e Desespero, de acordo com as explicações de Tamayo sobre todo o episódio de guerra (MARÍAS, VARONA, 2009).
A terceira alegoria que aparece no chão da tapeçaria é uma figura feminina de dupla face, vestida com um manto vermelho, segurando em sua mão esquerda um ramo de oliveira seco e na outra uma adaga. Ripa descreve a alegoria de Traição, Engano, Fraude ou Hipocrisia exatamente desta forma, mas Marías e Varona a interpretam como uma alegoria de Duplicidade ou duplicidade desleal, tendo assim na tapeçaria as três fortes idéias do texto de Tamayo de Vargas, que explicariam a ação holandesa: Heresia, Inveja e Deslealdade (RUIZ GOMEZ, 2009, p. 68).
Em primeiro plano, separada do resto por uma espécie de parede diagonal rochosa, está a primeira cena, a mais delicada, aquela que deu a esta pintura e seu autor, Maíno, uma estatura excepcional na história da pintura. É composto por 12 figuras. À esquerda, três homens barbudos, dois deles usando chapéus, são interpretados como homens portugueses retornando à cidade após sua estadia nos acampamentos da periferia. Sua atitude é conversacional e uma delas aponta para a cena central, a do soldado ferido, segurado por outra figura e atendido por uma mulher que veste sua ferida. Esta cena, que tem sem dúvida ressonâncias religiosas, alude à caridade cristã, elevando assim este tema para o tema central de toda a obra. Brown e Elliott relacionaram-no até mesmo com representações de Santa Irene atendendo a um São Sebastião limpo (BROWN, ELLIOTT, 1981). À esquerda da cena estão duas mulheres, uma usando roupas para o homem ferido, outra segurando uma criança em seus braços, o que lembra muito uma pintura de Gentileschi, e três crianças, uma delas cobrindo seu rosto em plena soluços e duas outras, nuas da cintura para cima, abraçando-se, interpretadas como viúvas e órfãos, vítimas da guerra. Ao fundo, um jovem usando um boné laranja observa a cena. Tem havido especulações quanto à identidade do homem ferido. Em princípio, do casaco ao seu lado, ele poderia ser um arcabuz. De suas roupas penduram uma espécie de bainha, que poderia ser interpretada como os “doze apóstolos”, as doze pequenas bolsas que os homens que levavam arcabuzes usavam amarradas ao peito com a pólvora para cada tiro. A cena aparece na peça de Lope de Vega, quando ele recria a ferida que o capitão Diego Ramírez recebeu no peito após o ataque holandês à posição espanhola no mosteiro de San Benito, logo após o desembarque:
Ó Marte duro e sangrento!
Ó musas, entristeça-se
porque Don Diego Ramírez
uma bala passa por seu peito! (Lope de VEGA, ed. De SOLENNI, p. 73).
No entanto, é possível que Maíno retomou aqui o que Tamayo escreveu, ao invés do que Lope representa. O cronista diz:
“O Capitão Don Diego Ramírez de Haro, caindo no chão de um mosquete disparado contra o mamilo com uma bala no braço, tentou se levantar porque estava tão encorajado a continuar, mas não pôde, porque a ferida era tão grande, que mal podia viver, tendo a bala sido tirada de suas costas”. (TAMAYO DE VARGAS, 1628, p. 109).
Se olharmos para a parte do corpo referida por Tamayo, é precisamente a parte do corpo onde a mulher aplica seus cuidados. A imagem como um todo é uma representação da caridade cristã, mas também pode ter duas mensagens políticas relacionadas com o episódio. As figuras contemplando o ferido poderiam ser portuguesas, atendendo a um espanhol ferido, simbolizando assim a união de corpos e almas que estava nas justificações do Conde Duque para a União de Armas. Deve-se notar, no entanto, que as figuras à esquerda, todas barbudos, estão de alguma forma ligadas aos holandeses barbudos e poderiam talvez ser uma representação dos neo-cristãos que deveriam ter sido fundamentais para mostrar aos holandeses o caminho para a cidade e teriam sido muito cooperantes com eles. Este é um tema central no trabalho de Lope e aparece aqui e ali nas Relaciones de sucesos da época, sendo, além disso, o bode expiatório utilizado pelas autoridades espanholas para justificar a facilidade com que os holandeses haviam tomado a cidade (SANTOS-PÉREZ, VICENTE MARTÍN, RODRIGUES-MOURA, 2022).
Em resumo, Maíno nos mostra aqui um episódio crucial na história da Monarquia espanhola no annus mirabilis de 1625, um episódio exemplar de colaboração entre os diferentes componentes da Monarquia, e uma ocasião para o dominicano mostrar, pela primeira vez na história, que, no final, o resultado da guerra é sempre uma cadeia de vítimas, incluindo os mortos, os feridos, as viúvas e os órfãos.
Maíno foi encarregado pelo Conde Duque de pintar um quadro que o exaltou como o cérebro por trás de toda a operação de guerra, mas que acabou colocando as vítimas e a virtude da caridade como o motivo principal, quando em teoria, como nas outras pinturas do Salão de Reinos, o objetivo era única e exclusivamente exaltar a vitória militar e a clemência para com os vencidos.
Como foi pintada nos anos 34-35, no auge da exaltação do papel do Conde Duque na política monárquica, e devido a sua estreita relação com a obra de Tamayo de Vargas, a pintura de Maíno não deixa de refletir a mensagem que Olivares queria transmitir desde o final dos anos 20: que o episódio do “Cerco e Empreendimento da Bahía de Todos los Santos” foi bem sucedido não por causa das ações dos generais e de Don Fadrique em particular, como se pensava originalmente, mas porque tinha sido planejado pelo tribunal. Neste “empreendimento” foi Olivares quem teria trazido seu sucesso, graças à sua ideia de que a ação conjunta dos reinos católicos sob uma única coroa espanhola era a única maneira de derrotar os numerosos inimigos da fé.
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Tamayo de Vargas, Tomás, Restauracion de la ciudad del Salvador, i Baia de Todos-Sanctos, en la Provincia del Brasil: por las Armas de Don Philippe IV el Grande Rei Catholico de las Españas y Indias etc. A su Magestad por don Thomás Tamaio de Vargas, su chronista. Madrid, Viuda de Alonso Martín, 1628.
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Vega, Lope de, El Brasil restituido, ed. de Guido de Solenni, Nueva York: Instituto de las Españas en los Estados Unidos, 1929.
José Manuel Santos-Pérez (Universidad de Salamanca)