O contrabando é definido pela primeira vez no Diccionario de Autoridades (1729) como “contravenção de tudo o que é proibido por proclamação, publicado por proclamação, nos locais ou locais destinados a tornar público o que o Príncipe quer que seja observado, ou não seja executado”. A esta definição geral são acrescentadas especificações sobre a sua aplicação ao comércio: “proibido de trazer para estes reinos, porque são de países inimigos, com os quais o comércio está fechado”. (Melón Jiménez, 2020:52).
Contudo, seria aconselhável considerar a definição oferecida na Novísima Recopilación (1760), uma vez que resume de forma exemplar a essência desta actividade e as suas implicações legais: “Todo o contrabando de tabaco, extracção de moeda, ouro, prata em barras ou pasta, cavalos, touros e gado, e qualquer fraude cometida nos direitos aduaneiros, receitas provinciais, e outras que são administradas em nome do meu Tesouro Real, deve ser compreendido e conhecido sob o nome de contrabando; porque viola as ordens que proíbem a introdução ou extracção de coisas proibidas, e usurpa os direitos que são impostos pelas leis e disposições reais sobre os bens de comércio lícito”. (Melón Jiménez, 2020:54)
O contrabando era uma prática comum nos territórios americanos sob domínio português antes, durante e depois da União de Coroas. A principal razão do seu sucesso parece ser a componente geográfica: foi um desafio tanto para a coroa castelhana como para os portugueses exercer um controlo efectivo sobre as vastas extensões territoriais na América. De facto, como vários historiadores salientam, muitos comerciantes de diferentes origens (holandeses, flamengos, ingleses) vieram para as áreas menos povoadas da costa brasileira. Isto, juntamente com a colaboração de colonos locais, tornou possível realizar trocas de mercadorias fora da vista dos oficiais reais (Antunes, Post, Salvado, 2016:28-29; Cañón García, 2018:223-224).
Além disso, as condições do sistema português de licenciamento facilitaram a muitos navios, depois de completarem as suas transações no Brasil, a navegação direta do território americano para diferentes portos no norte da Europa, evitando Lisboa e o pagamento de direitos aduaneiros. Este seria o caso do açúcar, um dos principais produtos extraídos no Brasil durante o período e uma mercadoria altamente valorizada nos mercados europeus. Segundo as instituições portuguesas, a extração e transporte de açúcar estava aberta a qualquer empresário, independentemente da sua origem. Uma vez extraído, a coroa exigia que os navios que o transportavam para a Europa passassem por um porto português para pagar os impostos correspondentes. No entanto, como indicado acima, o controle dessa navegação era muito complicado, de modo que os comerciantes podiam muitas vezes dirigir as suas cargas diretamente para outros portos sem sofrerem grandes consequências (Ebert, 2008: 39-40, 135-136).
A referida flexibilidade na navegação fazia parte de um fenómeno mais vasto: as frequentes transferências de navios e cargas que tiveram lugar entre os diferentes circuitos comerciais do Atlântico (Ebert, 2008: 139-140; Silva, 2012:154,160; Wheat, 2015).
Uma excepção, pelo menos em teoria, foi a madeira brasileira. A extracção e transporte desta madeira foi colocada sob o monopólio da Coroa Portuguesa desde muito cedo. A Coroa explorou-a através dos funcionários reais estabelecidos no Brasil, embora também pudesse ceder parte do monopólio a empresários privados. No entanto, o transporte era restrito do Brasil para o porto de Lisboa, onde os oficiais da Casa da Índia tinham a tarefa de supervisionar que os navios não trouxessem mais do que a quantidade de madeira autorizada pelas licenças. (Antunes, Post, Salvador, 2016: 26-27, 30). Isto funcionou em teoria, pois na prática ao longo dos sessenta anos que durou União de Coroas houve frequentes menções de viagens de navios carregados com pau brasil da costa brasileira diretamente para portos europeus sem passar por Lisboa (Ebert, 2008: 133; Cañón García, 2018: 222-223)
Outras estratégias fraudulentas comuns foram a renomeação dos navios após a sua partida, a alteração dos livros dos navios, e mesmo a produção de livros falsos em paralelo. Mas talvez as práticas mais populares e difíceis de perseguir fossem as chegadas maliciosas. Estas consistiam em desviar o navio do seu rumo original e atracar numa área despovoada da costa ou num porto para o qual não estava licenciado. Se as autoridades interviessem, o comandante do navio justificaria a chegada devido a reparações por tempestade ou ataque de piratas/inimigos. Durante a sua estadia, várias mercadorias e passageiros não registados foram desembarcados sem informar as autoridades ou pagar taxas, e introduzidos nos mercados interiores da região. (Canabrava, 1984:27; Cañón García, 2020: 220).
O contrabando efectuado entre as capitanias do sul do Brasil e a região do Rio da Prata merece uma menção especial. Os intercâmbios comerciais entre os enclaves castelhanos e portugueses da região já se realizavam durante as décadas anteriores, mas foram multiplicados durante a União de Coroas. Isto levou a repetidas queixas de funcionários reais e à publicação de leis para limitar tais relações. Contudo, não impediu a continuação do contrabando através do porto de Buenos Aires e outras rotas alternativas, tais como a Estrada Proibida na região de Guairá (actual Paraguai) (Canabrava, 1984; Vilardaga, 2010).
A incapacidade de impedir estas operações de contrabando deveu-se em grande parte às extensas redes pessoais construídas entre os habitantes destas povoações, bem como com membros de outros centros econômicos na Europa. Estas redes e as suas actividades prosperaram porque desenvolveram circuitos inter-regionais e intra-regionais alternativos aos circuitos oficiais (Alencastro, 2002). Mas uma importante actividade económica que influenciou este desenvolvimento foi o fornecimento de mão-de-obra aos grandes centros mineiros castelhanos de Potosí. Assim, comerciantes portugueses e outros introduziram escravos africanos através das rotas acima mencionadas, levando-os para os centros mineiros. Em troca, obtiveram prata e ouro, metais cobiçados para operações comerciais com mercados europeus e asiáticos (Cañón García, 2020: 219-220).
Tudo considerado, foi extremamente difícil acompanhar todas as embarcações, as suas cargas e passageiros. Isto deixou até agora aos historiadores pequenas migalhas de informação e estimativas que ilustram a presença do contrabando no Brasil na Monarquia Hispânica, mas que não nos permitem afirmar o volume real que esta actividade tinha no comércio atlântico.
BIBLIOGRAFIA
– Alencastro, L.F. (2002). O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das letras.
– Antunes, C.; Post, R.; Salvado, J.P. (2016). Het omzeilen van monopoliehandel: Smokkel en belastingontduiking bij de handel in brazielhout, 1500-1674, TSEG, 13, 1, 23-52.
– Canabrava, A.P. (1984). O Comércio Português no Rio da Prata (1580-1640). Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo.
– Cañón García, P. (2018). El comercio ilícito en los dominios americanos de la Monarquía Hispánica durante la Unión de Coronas: una propuesta de análisis a partir del estudio de las redes y su circulación. En Andújar Castillo, F.; Ponce Leiva, P. (Coords.). Debates sobre la corrupción en el Mundo Ibérico, siglos XVI-XVIII. Alicante: Biblioteca Digital Miguel de Cervantes.
– Cañón García, P. (2020). Interacciones entre los circuitos comerciales del atlántico durante la unión de coronas (1580-1640) a través del estudio de redes mercantiles y la circulación de sus miembros. En Santos Pérez, J.M. [et al.], (Eds.). Redes y circulación en Brasil durante la Monarquía Hispánica (1580-1640). Madrid: Sílex.
– Ebert, C. (2008). Between Empires: Brazilian Sugar in the Early Atlantic Economy, 1550-1630. Leiden/Boston: Brill.
– Melón Jiménez, M.A. (2020). Comerciar en la Edad Moderna. Nuevas perspectivas de investigación sobre el mundo de los negocios y las prácticas ilegales. En Iglesias Rodríguez, J.J.; Melero Muñoz, I.M. (Coords.). Hacer Historia Moderna: Líneas actuales y futuras de investigación, Sevilla: Universidad de Sevilla.
– Silva, J.G.F. (2012). Cristãos-Novos no negócio da Capitania de Pernambuco: relacionamentos, continuidades e rupturas nas redes de comércio entre os anos de 1580 e 1630 (tese de Doutorado). Universidade Federal de Pernambuco, CFCH, Recife.
– Vilardaga, J. C. (2010). São Paulo na órbita do império dos Felipes: conexões castelhanas de uma vila da América portuguesa durante a União Ibérica (1580- 1640) (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo.
– Wheat, D. (2015). Global Transit Points and Travel in the Iberian Maritime World, 1580-1640. En Mancall, P.C.; Shammas, C. (Eds.). Governing the Sea in the Early Modern Era: Essays in Honor of Robert C. Ritchie. San Marino, CA: Huntington Library.
Autor:
Pablo Cañón (European University Institute)Como citar este verbete:
Pablo Cañón García. “Contrabando no Brasil durante a Monarquia Hispânica“. Em: BRASILHIS Dictionary: Dicionário Biográfico e Temático do Brasil na Monarquia Hispânica (1580-1640). Disponível em: https://brasilhisdictionary.usal.es/pt/contrabando-2/. Data de aceso: 09/10/2024.