Dízima da Alfândega (Imposto)

Desde a Idade Média, estavam previstas nas relações feudais que os vassalos tinham a obrigação de prestar ajuda material e militar ao Senhor, constituindo-se dessa forma a primeira aproximação com a tributação da época moderna (AIDAR,2020:446). O processo está relacionado a uma mudança estrutural na sociedade ocidental que envolveu as formas de dominação política. O processo de centralização fortaleceu certas monarquias , consolidou-se entre os séculos XIV e XVI. Nesse cenário, os reis, antes isolados, expandiram seu poder. As monarquias adquiriram nova importância durante o curso de transformações graduais que acabaram por conferir “novas oportunidades de poder aos maiores príncipes” (Elias, 1993:16), que obtiveram o monopólio das armas e da força militar, apoiado na renda tributária de certo território (Elias, 1993:21).

A capacidade de extrair recursos materiais da sociedade foi primordial para Portugal, onde foram instituídos tributos de caráter geral como a sisa, de origem concelhia, que incidiu sobre as transações mercantis. Este tipo de imposto, instituído em Portugal antes da França e da Inglaterra, permitiu a solidificação do estado dinástico e a concentração dos seus poderes (Costa, 2020:55). A estrutura das finanças deste Reino foi essencial para a formação de um aparato burocrático e castrense, o que favoreceu a expansão marítima. O Estado beneficiou-se do incremento mercantil, através dos mares, graças às alfândegas e foi ele próprio armador e mercador (Godinho, 1968:45).

Dessa atividade provinha a dízima, encargo tributário correspondente a um décimo sobre a importação de mercadorias para o reino e que se tornou, desde o século XV até o XIX, a fonte mais importante de receita da Coroa. Na América portuguesa, nos três séculos de colonização, a fiscalidade teve “papel preponderante, seja como recurso de extração, seja como campo de negociação administrativa e política” (Costa, 2020:59). Nos séculos XVI e XVII, os dízimos que provinham dos produtos da agricultura e pecuária constituíram em um dos pilares fiscais básicos da Coroa no Brasil (Carrara; Santiró, 2013: 170). O imposto aduaneiro, ou seja, a dízima da alfândega também foi outra fonte de recursos. Com a vantagem de ser uma fonte de receita com pouca ou nenhuma resistência política local, cobrados logo após o desembarque das mercadorias nos portos. Exigia da administração um esforço menor em relação a outros tributos internos, uma vez que, apesar do contrabando e do descaminho, sua liquidez estava concentrada nos principais portos e no grupo de comerciantes (Vasques, 2009).

O Regimento dado ao provedor-mor, na época da instituição do Governo-geral, em 1548, determinava que nas alfândegas das capitanias deveriam arrecadar a dízima das mercadorias que para elas se destinassem ou delas saíssem. O pagamento do tributo era feito na proporção de um em cada produtos. No caso daqueles que não pudessem pagar dessa forma, a cobrança era em dinheiro, após a avaliação do juiz e almoxarife da alfândega, segundo os preços praticados na terra. As mercadorias arrecadadas eram leiloadas publicamente e arrematadas por quem oferecesse mais dinheiro, e essa operação deveria ser registrada pelo almoxarife em um livro de receita com informação sobre a quantia de produtos vendidos, a descrição deles e a identificação do comprador (Documentos Históricos, 1929). As mercadorias que não pudessem ser avaliadas unitariamente pelo seu tamanho diminuto ou pelo seu pouco valor, deveriam ser avaliadas em conjunto e lançadas as adições no livro de receita, o qual seria assinado pelo mercador responsável; em seguida, seria executado o pagamento do imposto ao tesoureiro da alfândega (Sá, 2016:127).

De acordo com o Foral da Alfândega de Lisboa, reformulado durante o governo do rei Felipe II (da Espanha) em 1587, no seu capítulo 49, as mercadorias pertencentes a pessoas a quem o monarca havia concedido privilégios tinham isenção da dízima, sendo despachadas livremente. Apesar da desobrigação do pagamento do tributo, tinham que ser despachadas como as demais, passando pelos oficiais e pelo juiz que fariam o exame para a devida certificação. Como não geravam receita, para que não houvesse dúvida, seu registro era realizado em livro próprio, separado, numerado e assinado como os demais, mas com a ressalva de que daquelas adições não se pagavam direitos em razão do privilégio concedido ao proprietário (Sá, 2016:127). Também se encontravam isentas da dízima os itens de uso pessoal, para aluguel ou não destinadas à venda, acompanhadas ou não de seus donos. Entretanto, se fazia necessária a abertura dos baús e arcas ou qualquer invólucro diante da Mesa da alfândega para a inspeção dos oficiais. Caso fosse confirmada a isenção, poderiam ser retiradas imediatamente, sem a necessidade de registro algum (Sá, 2016:127).

O relato do viajante Francisco Soares, que viajou de Lisboa ao Rio de Janeiro em 1597, com a intenção de negociar suas mercadorias, expressa um pouco do procedimento adotado pelos oficiais da Alfândega daquela cidade. De acordo com ele, tão logo o seu navio ancorou no porto, os referidos oficiais entraram na embarcação com o intuito de verificar o registro das fazendas trazidas e fazer a imposição do tributo devido (Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro,1923:151). A carta do provedor-mor da Fazenda do Estado do Brasil, Sebastião Borges, datada de 24 de dezembro do ano de 1614, para o Conselho da Fazenda, suscita dúvida em relação à cobrança da dízima. De acordo com o referido oficial, os mestres dos navios, em número de quatro ou cinco, que saindo do reino haviam pago o tributo, ao pararem no porto de Salvador, recusavam-se a pagar naquela aduana a dízima ou tributo de saída para Buenos Aires. Em resposta, o Conselho afirmou que, de acordo com o Foral, todos os navios do reino e senhorios, que fossem para a América com mercadorias, mostrando certidões comprobatórias de pagamento da dízima em Portugal, estariam isentos nas alfândegas no Brasil. Mas, se levarem mercadorias da colônia para fora do reino, deveriam pagar de saída a dízima de Sua Majestade. Do mesmo modo, o artigo 8º do Foral determinava que quaisquer pessoas que não fossem dos ditos reinos, mesmo tendo pago dízima nas aduanas portuguesas, teriam de efetuar novamente o pagamento nas congêneres da colônia. E, de lá saindo para outras regiões, carregando produtos, deveriam pagar assim mesmo a dízima da saída.

Essa forma de cobrança da dizima foi mantida até o final do século XVII, quando foi alterada no Rio de Janeiro para incremento de receita tributária em razão da necessidade de recursos para defesa da cidade e da região de fronteira do sul da América lusa. Tal alteração se deu em virtude de uma solicitação do Conselho Ultramarino para que os oficiais camarários propusessem um aumento na tributação para pagamento de despesas. Esses então ofereceram a cobrança da dízima sobre todas as mercadorias, inclusive as oriundas do reino, o que foi aceito pelo rei dom Pedro II (Fernandes, 2019:83). No início do século XVIII, o rei dom João V impôs esse modelo em Pernambuco e na Bahia.


FONTES DOCUMENTAIS


– AHU, Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos BG, Cx.1, D.3, Lisboa, 1615. Informação do Conselho da Fazenda sobre a carta do provedor-mor da fazenda de Estado do Brasil, Sebastião Borges, acerca dos navios que iam daquele Estado comerciar no Rio da Prata sem pagar a dízima de saída.


– Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (1923). Rio de Janeiro, 147, 93.

BIBLIOGRAFIA


– Aidar, B.; Slemian, A.; Lopes, R. (Orgs) (2020). Dicionário Histórico de conceitos jurídicos-econômicos (Brasil, séculos XVIII-XIX). São Paulo: Alameda.


– Carrara, A.; Santiró, E. (2013). Historiografia econômica do dízimo agrário na Ibero-América: os casos do Brasil e Nova Hespanha, século XVIII. Estudos Econômicos. São Paulo, 43,1, 167-262.


– Peres Costa, W. (2020). Cidadãos & contribuintes: estudos de história fiscal. São Paulo: Alameda.


– Elias, N. (1993). O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, v.II.


– Fernandes, V. (2019). Império e colonização: alfândegas e tributação em Portugal e no Rio de Janeiro (1700-1750). (Tese Doutorado em História Econômica). São Paulo: Universidade de São Paulo.


– Magalhães Godinho, V. (1968). Ensaios II: sobre a História de Portugal. Lisboa: Sá da Costa.


– de Cassia Trindade de Sá, H. (2016). A alfândega do Rio de Janeiro: da União Ibérica ao fim da Restauração (ca. 1580-ca.1668). (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.


– Serrão, J. (1971). Dicionário da História de Portugal. Porto: Iniciativas Editoriais.


– Vasques, S. (2009). A evolução histórica do Estado Fiscal português. Revista Fórum de Direito Tributário. Belo Horizonte, 7, 37, 9-5

Autor:

Helena de Cassia Trindade de Sá (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)

Como citar este verbete:

Helena de Cassia Trindade de Sá. “Dízima da Alfândega (Imposto)“. Em: BRASILHIS Dictionary: Dicionário Biográfico e Temático do Brasil na Monarquia Hispânica (1580-1640). Disponível em: https://brasilhisdictionary.usal.es/pt/diezmo-aduanero-impuesto-2/. Data de aceso: 02/05/2024.

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