Irmãos Coutinho: Gonçalo Vaz Coutinho; João Rodrigues Coutinho; Manuel de Sousa Coutinho (Frei Luís de Sousa)

O percurso dos irmãos Coutinho revela uma estratégia familiar onde o comércio e os serviços prestados no ultramar se transformaram em um fator importante para a ascensão social. Os irmãos consolidaram as conexões entre a Península Ibérica e os espaços ultramarinos e inauguraram a fase da complementaridade atlântica. Através do tráfico de escravos, como fator de enriquecimento e de construção de redes sociais e políticas para ascensão no reino e na corte. Equipararam os serviços e o governo de Angola àqueles prestados no norte da África e nas Índias. Levaram o tráfico de escravos a um novo patamar, favorecendo a política indigenista nas Américas, e incrementaram a produção e o comércio atlântico. 

Porém, a trajetória de serviços à Coroa, que incluía as guerras no Norte da África e na Índia, seguida de cargos militares e de governo no Atlântico, para uma ascensão social no Reino, remete à história paterna, de Lopo de Sousa Coutinho. Filho de Fernão Coutinho e de D. Joana de Brito, neto do 2º conde de Marialva, D. Gonçalo Coutinho, Lopo nasceu em Santarém, por volta de 1515. Foi militar, esteve na tomada de Azamor e combateu na Índia, no governo de Nuno da Cunha, onde participou do cerco de Diu, tendo escrito um livro sobre esse evento (Furley, Cremona, 1958: 203-205). 

Lopo retornou a Portugal em 1545, sendo nomeado pelo conselho do rei D. João III, capitão e governador de São Jorge da Mina onde, segundo Luiz Felipe de Alencastro (2000: 404, n. 18), se envolveu com o tráfico de escravos. Lopo de Sousa foi casado com D. Maria de Noronha (filha de D. Fernando de Noronha, capitão de Azamor), que era dama da rainha D. Catarina. Tiveram muitos filhos, dentre os quais: o primogênito, Rui Lopes Coutinho, Diogo Lopes Coutinho, João Rodrigues Coutinho, Gonçalo Vaz Coutinho, nascido em Santarém no ano de 1556, Manuel de Sousa Coutinho, nascido na mesma cidade em 1558, Lopo de Sousa Coutinho e André de Sousa Coutinho. Lopo morreu em um acidente: ao apear de seu cavalo, precipitou-se sobre sua própria espada. 

Gonçalo Vaz obteve o grau de bacharel em Artes pela Universidade de Coimbra, em 1575, e o de licenciado e mestre em Artes, no ano seguinte. Frequentou o curso de Teologia, mas o abandonou em 1577. Manuel de Sousa Coutinho foi nomeado moço fidalgo da Casa Real em 1572 pelos serviços prestados por seu pai e por seu avô. Em seu alistamento à Ordem de Malta, foi preso pelos “mouros” em sua partida da Ilha da Sardenha, em 1577, sendo levado cativo para Argel. Resgatado de Argel, Manuel viveu em Valência, onde estudou sob a supervisão de Jaime Falcão. Retornou a Portugal em 1579 e, no ano seguinte, foi nomeado alcaide-mor do castelo de Marialva e capitão das ordenanças da vila pelos governadores de Portugal, enquanto os irmãos Rui Lopes e Lopo de Sousa participaram da batalha de Alcácer Quibir, onde o rei D. Sebastião desapareceu (Labrador, 2006: 959, 1230, 1267).

Em relação à sucessão dinástica em Portugal, os irmãos Coutinho pareciam estar predispostos a apoiar a causa filipina, e as mercês concedidas por Felipe II confirmaram essa inclinação. Os Coutinho representavam os interesses de uma nobreza portuguesa que avistava na ascensão de Felipe uma oportunidade, favorecendo essa causa nos lugares e junto a suas redes de relações e dependentes (Bouza, 2005: 58, 99-111). 

O apoio a Felipe II lhes rendeu, imediatamente, uma melhor posição junto à Casa Real portuguesa e passaram ao serviço do novo rei nas Índias – para lá seguiram os irmãos Rui, Diogo, João e André. Gonçalo não os acompanhou por contrair a peste, que então grassava em Portugal. 

João Rodrigues, no retorno da Índia, foi nomeado capitão e governador de São Jorge da Mina, posição que ocupou por mais de onze anos. Em seu governo, foi acusado de saquear barcos inimigos, de apropriar-se indevidamente da renda dos defuntos e estabeleceu negócios em São Tomé. Gonçalo Vaz, em 1588, foi designado governador militar de São Miguel dos Açores, cargo que deteve por tempo semelhante ao de João, sendo elevado a fidalgo escudeiro e, em data incerta, se tornou conselheiro de Estado em Portugal (Labrador, 2006: 1267).

O posicionamento estratégico dos irmãos no Atlântico é evidente: o primeiro atuava na principal praça portuguesa da costa da África subsaariana, que se destacava pelo acesso ao ouro e aos escravos da Guiné, enquanto Gonçalo governava na placa giratória do Atlântico, conexão com o Brasil e as Índias de Castela, com a África e o Mediterrâneo (Chaunu, 1980: 61-65). Faltava um porto nessa história, o de Luanda. 

Com a incorporação de Portugal ao domínio hispânico, o capitão-donatário de Angola, Paulo Dias de Novais e os jesuítas, se dirigiram ao novo rei para garantir a continuidade de seus direitos sobre aquela conquista. Em 1583, ainda em Portugal, Felipe II despachou o corregedor João Morgado e uma força militar para Angola. Com a morte de Paulo Dias, em 1589, pôs em curso a retomada da capitania, enviando D. Francisco de Almeida como seu primeiro governador que, no entanto, não assumiu o cargo, sendo preso por uma conspiração em que participaram os conquistadores e os jesuítas. Em 1593, Felipe II nomeou João Furtado de Mendonça para o governo de Angola, cargo que assumiu em 1595 e que deteve até 1602, passando-o a João Rodrigues Coutinho.

Em 1601, as experiências e o dinheiro adquiridos na África, e à associação com a Coroa, permitiram que João Rodrigues Coutinho arrendasse os contratos de Angola (referente à cobrança dos direitos régios), o de escravos e o das minas de prata. O período do asiento e o de governo se estenderam por nove anos (maio de 1600 a abril de 1609). João Rodrigues desembarcou com a maior expedição vista em Angola, e segundo o padre Fernão Guerreiro, no momento de sua chegada, mais nenhum chefe nativo estava submetido à Coroa. O motivo dessa desolação era que os sobas, tirados do controle dos jesuítas e dos conquistadores, haviam se rebelado contra os portugueses e o rei. 

Para o padre Fernão Guerreiro, a chegada de João Rodrigues restaurou a autoridade portuguesa sobre Angola. João Rodrigues Coutinho restaurou aquele sistema de domínio por meio da aliança com os sobas amigos e nas guerras de sujeição, colocando novos chefes africanos sob o domínio régio com a proteção dos anos leigos e religiosos.

Enquanto João Rodrigues Coutinho guerreava em Angola, Gonçalo Vaz voltou a atuar nas ilhas atlânticas, assinando um contrato junto ao Conselho de Guerra, e com a aprovação de Cristóvão de Moura, para o provimento do presídio de Angra, nos Açores, e o abastecimento dos contingentes militares na Madeira e Terceira, bem como a manutenção das fortalezas. (Schaub, 2014: 89-92). Já Manuel de Sousa foi o representante dos irmãos na América espanhola. Sua base de operações foi o porto de Cartagena de Índias, onde era “administrador geral da renda do assento” de João Rodrigues. 

Assim que a notícia da morte de João Rodrigues chegou ao rei e a partir de uma relação feita pelo licenciado Hernando de Villagómez, fiscal do Consejo de Indias, Felipe III mandou sequestrar e embargar os bens de João Rodrigues nas províncias do Rio da Prata, pelas dívidas que tinha com a fazenda real e para evitar que seus irmãos e herdeiros requeressem tais bens (Registro, I, 1860: 14).

Em seguida, a Junta de Negros definiu as novas condições do contrato, que aumentaram significativamente o controle exercido pela Coroa. O asiento foi firmado em maio de 1604, tinha uma duração prevista de cinco anos sendo reajustado para 32 contos de réis por ano. Gonçalo deveria quitar a dívida referente aos quatro anos de contrato do irmão, garantida por uma caução. Todas as licenças vendidas deveriam ser registradas na Casa de Contratación, em Sevilha, e o dinheiro colocado nos cofres da Coroa. Até as licenças vendidas na América deveriam ser depositadas nos cofres reais. Os lucros provenientes do tráfico seriam administrados pela Coroa, dos quais embolsaria 8% (Scelle, 1906: 30-31, 392-396). 

Em 1606, do Rio de Janeiro, Manuel de Sousa pediu para ser nomeado governador de Angola, enquanto Gonçalo figurava em duas listas, na de governador da Mina e na do Brasil. O fato reforça a ideia de que Manuel era a vertente americana do circuito Buenos Aires-Rio-Luanda estabelecido pelos Coutinho, negociando escravos, prata e cavalos.

O rei vetou as novas pretensões de governo, o documento que registra o pedido de Manuel possui a seguinte anotação lateral: “já nomeado D. Manoel Pereira, e ordenado que cesse a conquista, e se contratem por conta de sua Real fazenda os direitos, e provisão daquele Reino”. A anotação revela a preparação de uma mudança na condução dos tratos e governo de Angola, que deveria ser colocada em prática por meio do envio do novo governador.

O campo de atuação dos irmãos Coutinho na América espanhola era extremamente amplo, incluindo as ilhas do Caribe, com destaque para Cuba e Santo Domingo, e no continente, Cartagena, Guatemala, Nova Espanha, Buenos Aires, La Plata (atual Sucre) e Potosí; nesses espaços eles também estabeleceram relações que fugiam ao controle e interesses da Coroa. As potencialidades econômicas e políticas daquele comércio atiçaram os interesses e ambições de diferentes redes que se estabeleceram entre a Europa e o ultramar. Nota-se que os questionamentos sobre a condução do asiento pelos irmãos Coutinho, por parte da Coroa e de outros grupos, se iniciaram logo em seguida à assinatura do contrato, porém o descontentamento e a pressão sobre o asiento se acentuou a partir de 1608.

Os atrasos no pagamento do contrato eram frequentes, o contrabando aumentava e as conexões dos poderes coloniais, que se estabeleciam no Atlântico, se consolidaram. O contrabando de escravos drenava uma parte importante da prata potosina; em um informe de 1604, o rei diz ter tido notícia de que eram levados muito mais escravos do que o estipulado no asiento, que vinham sem licenças e eram pagos em prata, a qual vinha escondida em sacos de farinha de trigo de Córdoba (Registro, II, 1860: 63-64). 

Em Santo Domingo, a Coroa acusava diferentes autoridades de serem cúmplices de Gonçalo Vaz Coutinho, que cobrava direitos excessivos pelas licenças do comércio negreiro. Da Guatemala, o tesoureiro Melchor Ochoa de Villanueva e o contador Pedro del Castillo Becerra enviaram carta ao rei com os autos de testemunhas relativos ao confisco dos bens de João Rodrigues Coutinho, Gonçalo Vaz e Juan Núñez Correa. Em 1608, Manuel de Sousa Coutinho retornou à Almada, de onde passou uma procuração a Francisco Pires para defender seus interesses nas Índias Ocidentais (Castro, 1984: 13). 

Assim, o plano de favorecimento e aliança com os irmãos Coutinho se mostrava em crise, estimulada pelos fortes interesses dos comerciantes de Sevilha, vinculados à Casa de Contratación, ao Consejo de Indias e ao Consulado, e relacionada às mudanças na composição da Junta de Negros e do Conselho da Índia. Na primeira, por meio da atuação de Melchor Maldonado, tesoureiro da Casa de Contratación e juiz do Consulado, futuro administrador das licenças de escravos em nome da Coroa, e do presidente Pedro Fernandez de Castro y Andrade, o conde de Lemos que, como presidente do Consejo de Indias, havia sido uma pessoa chave no desenvolvimento da política indigenista no reinado de Felipe III. Sua atuação reforçava a ideia de que o tráfico de escravos africanos era, além de um importante negócio, um instrumento político, que favorecia o destacamento da autoridade real nas Américas. 

Manuel de Sousa Coutinho e sua esposa, Madalena de Vilhena, passaram à vida religiosa entre 1613 e 1614, ele no convento de São Domingos de Benfica, e ela no do Sacramento, ambos em Lisboa. Ao tornar-se frade, adotou o nome de Frei Luís de Sousa, em homenagem ao sobrinho, filho de Gonçalo Vaz, falecido em Angola (Alencastro, 2000: 81). Morreu em Lisboa, no ano de 1632 (Labrador, 2006: 1230). 

Gonçalo Vaz ainda foi nomeado para o governo de Angola, em 1613, o que mostra que a ruptura com Felipe III não foi absoluta, no entanto, não ocupou esse cargo, aparecendo mais tarde no comando da feitoria de Mazagão, no Marrocos (Alencastro, 2000: 81). O outro filho de Gonçalo, D. Francisco de Sousa Coutinho foi o mais importante diplomata da restauração portuguesa, que destacou o lugar estratégico de Angola em sua complementaridade com o Brasil e como um dos fundamentos da monarquia bragantina. Um terceiro filho de Gonçalo, Lopo, casou-se com a filha de Manuel Pereira Coutinho, governador de Angola entre 1630 e 1635. Seu neto, e homônimo, contraiu matrimônio com Bárbara da Veiga, filha de Diogo da Veiga, importante comerciante cristão-novo, associado a banqueiros da corte de Madri, que controlava negócios no Brasil, Peru, Angola, Portugal e Flandres (Alencastro, 2000: 82). 

A trajetória dos Coutinho revela uma estratégia familiar onde o comércio e os serviços prestados no ultramar se transformaram em um fator importante para a ascensão social. O interesse da Coroa hispânica em ter maior controle sobre o tráfico de escravos e, consequentemente, sobre o comércio colonial, além do reconhecimento de que a importação massiva de escravos africanos favorecia sua política em relação aos ameríndios e a construção de sua soberania sobre as Américas, fez com que Felipe II e Felipe III estimulassem uma família da nobreza portuguesa a encabeçar esse comércio.

O tráfico de escravos se inseria no arcabouço político que envolvia as relações de poder na Corte, em Portugal e no ultramar. Não obstante, a associação entre a Coroa e os Coutinho estava sujeita às práticas coloniais, ao lobby dos comerciantes sevilhanos e às diferentes perspectivas imperiais ibero-atlânticas. Sobre o primeiro ponto, os irmãos Coutinho reforçaram as lógicas de poder centrífugas: estimulando o domínio dos conquistadores e jesuítas sobre os sobas de Angola, se envolvendo com as forças sociais do comércio, legal e ilegal, e da produção colonial.


BIBLIOGRAFIA

  • Alencastro, L. F. de (2000). O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Bonciani, R. F. (2016). Os irmãos Coutinho no atlântico: escravidão, governo e ascensão social no tempo da monarquia hispânica, Revista Latino-Americana de Estudos Avançados, 1, 1, 158-173.
  • Castro, A. P. de (1984). Introdução. En Sousa, L. de. Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
  • Chaunu, Pierre. (1980). Sevilha e a América nos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Difel.
  • Bouza, F. (2005). D. Filipe I. Lisboa: Círculo de Leitores.
  • Labrador, F. A. (2006). La casa real portuguesa de Felipe II y Felipe III: la articulación del reino a través de la integración de las elites de poder (1580-1621) (Tese de Doutorado). Universidad Autónoma de Madrid, Madrid.
  • Furley, J., CREOMONA, J. (1958). Notes on some Portuguese governors of the Captaincy da Mina, Transactions of the Historical Society of Ghana, 3, 3, 194-214.
  • REGISTRO Estadistico del Estado de Buenos Aires. (1860). Tomos I e II. Buenos Aires: Imprenta Argentina de El Nacional.
  • Schaub, J. F. (2014). L’île aux mariés: les Açores entre deux empires (1583-1642). Madrid: Casa de Velázquez. Scelle, G. (1906). La traite négrière aux Indes de Castille: contrats et traités d’assiento. Vol. 1. Paris: Librairie de la Société du Recueil J.-B. Sirey & du Journal du Palais.

Autor:

Rodrigo F. Bonciani (Universidade Federal de São Paulo)

Como citar este verbete:

Rodrigo Faustinoni Bonciani. “Irmãos Coutinho: Gonçalo Vaz Coutinho; João Rodrigues Coutinho; Manuel de Sousa Coutinho (Frei Luís de Sousa)“. Em: BRASILHIS Dictionary: Dicionário Biográfico e Temático do Brasil na Monarquia Hispânica (1580-1640). Disponível em: https://brasilhisdictionary.usal.es/pt/hermanos-coutinho-2/. Data de aceso: 02/05/2024.

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